Da mesma forma que alguns especialistas usam a astrologia como uma ferramenta de autoconhecimento, outros se baseiam em métodos diferentes para ensinar como se conhecer de forma profunda. Os arquétipos míticos, ou seja, padrões de comportamento baseados na mitologia, como as deusas gregas, por exemplo, são uma maneira de compreender melhor suas próprias ações e, ao mesmo tempo, se conectar com o lado sagrado do feminino.
Ao Delas , Graça Bacelar Araújo, psiquiatra, psicoterapeuta e criadora do Círculo de Mulheres Deusas Lobas, diz que a palavra arquétipo foi moldada pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica. Em sua tese, Jung defende que existem cinco diferentes níveis de consciência: o “eu” , a “sombra”, o “inconsciente pessoal”, o “inconsciente familiar” e o “inconsciente coletivo”.
- O ‘eu’, também chamado de ‘ego’, é a persona que mostramos para o mundo
- A ‘sombra’, o que não queremos que ninguém veja
- O ‘inconsciente pessoal’, estudado por Sigmund Freud, são as reminiscências que vão ficando arquivadas na nossa psique
- O ‘inconsciente familiar’ esse aprendizado que vem da influência familiar
- O ‘inconsciente coletivo’ é como um ‘rio que corre dentro da gente’, explica Jung
Os arquétipos das deusas gregas estão, portanto, no inconsciente coletivo, pois são memórias ancestrais que fazem parte da vivência e cultura de toda a humanidade. “Os padrões mitológicos vão adquirir formatos diferentes dependendo da cultura. As deusas recebem nomes diferentes em culturas diferentes, existem as celtas, egípcias, indianas, mas todas possuem muitas semelhanças em muitos aspectos”, explica Graça.
Ela, que trabalha os arquétipos no Círculo de Mulheres Deusas Lobas há 20 anos, afirma que trazer a questão das deusas míticas gregas é uma forma de projetar aspectos profundos do “eu”. “Em termos míticos, projetamos nossas vivências, semelhanças e padrões de ressonância através das histórias que esses mitos nos trazem.”
Assim, são sete as deusas que a psicoterapeuta mais utiliza no Círculo, lembrando que todas têm um lado de luz e outro de sombra; confira abaixo:
Deusas não-vulneráveis
“Chamamos de não-vulneráveis aquelas que não precisam de relacionamento para se sentirem felizes, ou seja, são muito mais autónomas”, afirma Graça. São três as deusas aqui: Héstia, Atenas e Ártemis.
Héstia
Héstia é a deusa da chama sagrada e representante do tempo sagrado. Na Grécia antiga, ela era o símbolo do lar – tanto que, muitas vezes, é representada apenas por uma chama.
“É um arquétipo que não está muito preocupado com o que vai representar para o mundo, mas é muito conectada com a interioridade, com momentos de relaxamento, reflexão, introspecção, cuidar de si e da casa. É aquela que nos facilita buscar pela paz interior – algo extremamente necessário para lidar com o mundo externo.”
O lado sombrio de Héstia é visto quando a deusa fica excessivamente reclusa e se torna uma pessoa com pouca vivência social, muitas vezes isolada, o também prejudica sua vivência no mundo.
Atenas
Deusa da sabedoria e do conhecimento, Atenas é filha de Métis e nasceu da cabeça de Zeus. “Ela é aquela que detém o conhecimento profundo e foi considerada a mente brilhante dos planejamentos estratégicos no Olimpo”, diz Araújo.
Isso significa que ela é uma deusa que traz a expansão racional, intelectual e da reflexão, mas para que se torne útil e construtiva, é preciso também trazer a característica da sensibilidade.
“É uma deusa que transita muito bem no mundo dos homens e é bastante racional, sensível, perceptiva, lógica – o que facilita que seus projetos sejam vitoriosos. Porém, quando fica excessivamente polarizada nesse racionalismo radical, ela nega o corpo e foca apenas na cabeça, se tornando muito rígida e perdendo essa sensibilidade.”
Ártemis
Deusa da caça, Ártemis é muito conectada com a natureza e com a liberdade de ser. “É um arquétipo que está emergindo bastante nesse período de transição das mulheres, que buscam ser livres”, comenta.
A deusa é solidária e amiga, mas não gosta de controle e é ressentida com toda a repressão do patriarcado, o que também a faz ser impulsiva. “Então, quando se desestabiliza, ela se torna briguenta, competitiva, raivosa. É um arquétipo bastante interessante e necessário, mas que necessita de todo um processo de cuidado.”
Deusas vulneráveis
“As deusas consideradas vulneráveis são aquelas que, de alguma forma, vivem sofrimentos mais peculiares ao se envolver em relacionamentos”, comenta a psicoterapeuta. São elas: Hera, Deméter, Perséfone e Afrodite.
Hera
Deusa do matrimônio sagrado, Hera foi uma das mulheres de Zeus e a única que conseguiu ficar casada com ele. Porém, ela viveu uma experiência de amor e dor intensa por causa das traições do marido.
“Ela é a rainha do Olimpo, muito bonita, proativa, parceira e leal ao marido, mas deixou a própria vida de lado para viver a vida dele. Assim, ela cobra essa fidelidade também dele, mas acaba se tornando amarga, sofrida e de alguma forma ferida quando não encontra”, diz a profissional.
Segundo ela, este arquétipo se relaciona bastante às feridas vividas nos relacionamentos. “Hera precisa resgatar sua autonomia e seu poder criativo para que se torne menos dependente dessa condição do outro trazer a felicidade para ela. É uma revisão, ressignificação que buscamos realizar através desses mitos”, completa.
Deméter e Perséfone
As histórias de Deméter e Perséfone estão conectadas. A primeira é a deusa mãe, dos cereais, da nutrição e do cuidado com os filhos. “Ela cuida, nutre, protege, está sempre acompanhada por crianças, cuidado de algo ou de alguém”, diz Araújo.
No mito, Deméter é mãe de Perséfone, deusa das estações, flores, frutos e fertilidade. “A deusa filha foi criada de uma forma singular, com muito amor, mas também superproteção”, completa.
Quando Perséfone é sequestrada por Hades, deus do submundo, ela se torna rainha do inferno e passa por um processo de amadurecimento. “É um arquétipo que traz experiências que podemos projetar no nosso processo de viver, por que quem nunca viveu uma experiência de ser ‘sequestrada’ por uma dor, um sofrimento?”, questiona.
Afrodite
“Afrodite, deusa do amor e da beleza, ama amar. Ela é alegre, traz um erotismo natural da sua essência e busca o prazer em tudo que vive e faz”, comenta.
O lado sombrio da sétima deusa do Círculo é manifestado exatamente por essa entrega ao amor. “Isso faz com que ela não tenha muitas regras em relação aos limites de como viver isso e, às vezes, nesse espaço de ‘não limites’, pode entrar em um lugar de vulgaridade.”
Qual é a conexão dos arquétipos com o feminino?
De uma forma bem simplificada, o sagrado feminino é uma filosofia cujos ensinamentos se baseiam nos aspectos físicos e mentais da figura feminina, promovendo uma reconexão consigo mesma. A relação disso com os arquétipos das deusas acontece quando elas são usadas para refletir sobre os próprios padrões de comportamento.
“É importante que nesse reflexo com os mitos a gente perceba quais características e padrões são mais fortes na nossa personalidade e no nosso jeito de ser ao longo da vida, e quais emergem em determinado momento, seja na luz ou na sombra”, afirma a psicoterapeuta.
“Todas as pessoas têm essas energias, mas alguns polarizam mais uns do que outros e é nessa ‘mesa redonda’ que precisamos refletir sobre nossas possibilidades, limites e escolhas profundas”, reforça Graça.
De acordo com ela, o lado de luz precisa ser potencializado e expandido, mas ao contrário do que muita gente pensa, o sombrio não deve ser descartado.
“Precisamos entender a sombra para compreender que aquela aquela vulnerabilidade existe e, como explica Jung, sair da sombra patológica para uma sombra ‘normal’ – de um comportamento danoso para um que, de alguma forma, nos deixa mais coerentes com que faz sentido para nossa vida”, explica.
Assim, à medida que essa compreensão acontece e é feito um paralelo com os mitos, é possível se aprofundar no autoconhecimento e, também, na compreensão do coletivo. “Esses arquétipos são alguns dos grandes acessos aos femininos sagrados e são essenciais por ser uma forma rápida de se reconhecer, compreender o coletivo e avançar na expansão da consciência.”
Isso é feito, segundo a profissional, “através das partilhas e da experiência de aprender como lidar internamente com as deusas, criando uma ‘negociação interna’ com as partes sábias ou destrutivas desses arquétipos e meditar sobre determinado tema, seja a liberdade de ser, filhos, amor.”
“Por exemplo, se quero ter mais autonomia, preciso entender que vivo em um mundo com uma energia patriarcal que demanda planejamento estratégico para lidar com as adversidades, então a deusa Atenas vai precisar dialogar para essa questão.”
“O propósito é sermos mulheres com mais consciência de quem somos, e a medida que temos isso, alguns sofrimentos podem ser evitados e compreendidos e é possível as pazes consigo mesma na autoaceitação e autocuidado, reconhecendo suas competências como pessoas, mas também seus desafios”, finaliza.