Dia 12 de outubro, dia da descoberta da América, é também Dia Internacional da Mulher Indígena . Embora a cultura dos povos originários seja extremamente importante e presente no nosso país, ela é muitas vezes desvalorizada e alvo de um racismo estrutural há mais de 500 anos. Isso afeta toda a população indígena, mas atinge principalmente as mulheres, que ainda sofrem com o machismo.
Alguns dos diversos obstáculos que mulheres indígenas enfrentam são: poucas oportunidades de acesso ao mercado de trabalho, dificuldades geográficas e econômicas para acessar serviços de educação, acesso limitado a programas e serviços sociais, escassa participação no processo político e marginalização social.
Essa exclusão política, social e econômica das mulheres indígenas contribui para uma situação permanente da discriminação. Olinda Muniz Wanderley, formada em Comunicação Social, cineasta e ativista ambiental, da etnia Tupinambá e Pataxó Hã-hã-hãe, e Renata Machado, jornalista, produtora e roteirista, também do povo Tupinambá, relatam ao Delas as dificuldades enfrentadas para a ascensão profissional, derivado do ainda existente racismo estrutural, além do fato de serem mulheres.
Os obstáculos na trajetória até a ascensão profissional
“Meu processo de formação foi difícil, pois durante minha adolescência o povo que morava na cidade tinha muito preconceito com os indígenas”, relata Olinda Wanderley (30) que nasceu e cresceu no Nordeste. Ela conta que para conseguir estudar tinha que pegar um ônibus que passava na área da cidade para chegar até a escola da aldeia que fica em outra parte do território indígena. Certa vez as pessoas atearam fogo no meio de trasnporte. Além disso, atentados a tiro também eram frequentes, assim como o sentimento de medo.
Já Renata Machado (31) relata que já cresceu em um ambiente urbano, mas que mesmo assim sofreu muitos preconceitos para conseguir ascender profissionalmente. “Constantemente me deparei e me deparo com situações em que as pessoas, ao saber que sou Tupinambá, já agem como se eu não tivesse capacidade para realizar com profissionalismo algum trabalho. Isso é ainda maior com o fato de ser mulher, ao realizar projetos tendo a presença de homens, eles são sempre colocados acima”, conta.
Racismo e machismo andando juntos
As duas entrevistadas enfatizam que as pessoas muitas vezes estereotiparem a imagem da mulher indígena. “É preciso desconstruir a imagem de ‘Iracema’ dos não indígenas e conhecer mais as culturas, para respeitar as diferenças”, diz Renata. “Existe falta de conhecimento das pessoas sobre as mulheres indígenas serem plurais, além de possuir culturas indígenas diferentes entre si e viver em contextos variados”.
Ambas afirmam que as pessoas ainda enxergam que ser indígena muitas vezes significa ter pele morena, cabelos longos, lisos e pretos e totalmente alheia às coisas da vida urbana. “A vida inteira ouvimos as pessoas dizendo que somos preguiçosos, que índio de verdade tem que andar nu, que não pode ter celular, carro… Imagine indígena fazer faculdade então?”, diz Olinda.
A cineasta ainda relata um episódio em que percebeu fortemente o racismo que estava sofrendo. “Ano passado eu ganhei um edital para fazer uma mostra de cinema com filmes indígenas, dirigidos por mulheres. O governo do estado da Bahia queria me obrigar a ir para Salvador passar por uma comissão que iria dizer se eu era indígena ou não. Me recusei a passar por tamanha humilhação, e aquilo para mim, foi completamente racista”.
Além disso, as mulheres ainda lidam com o machismo, o que acaba contribuindo para sua exclusão. “Já tive problema com homens brancos que normalmente não aceitam ter uma mulher indígena jovem em situação de chefia. Muitas vezes tentam interferir no meu processo criativo enquanto diretora. Durante a faculdade tive colegas que tentaram me silenciar”, conta Olinda.
Projetos profissionais para promover a representatividade indígena
Mesmo sofrendo com os problemas sociais enraizados na sociedade, ambas conseguiram se firmar profissionalmente e usam o poder profissional para ampliar a representatividade indígena nas mais diversas áreas.
Renata Machado é fundadora da “Yandê”, primeira rádio indígena do país. A proposta é mostrar um protagonismo por parte desses povos, autonomia e independência. “Sempre buscamos na rádio mostrar como a comunicação rompe fronteiras geográficas, além de difundir as culturas indígenas, o direito a comunicação indigena, políticas públicas, música, entretenimento, educação. Ser um espaço de encontro e fortalecimento das narrativas indígenas”, relata.
“Tudo que é indígena existe uma desvalorização do mercado. As vezes pessoas perguntam para que índios precisam de uma rádio? Como se não fossemos humanos”, lamenta.
Além da rádio, Renata também é membra de um projeto no território indígena Tupinambá na Bahia, chamado “Útero Amotara Zabelê”, protagonizado inteiramente por mulheres. Ela também é produtora de uma central de podcasts femininos chamada PodSim: “Meu podcast é o “originárias” voltado para artistas e músicos indigenas do séculos 21.
Já Olinda Wanderley usa o cinema e seu trabalho no audiovisual como uma oportunidade de poder contar as narrativas indígenas, mostrar a realidade como ela realmente é e criar conteúdo audiovisuais sem preconceito e sem visão anacrônica sobre esses povos. “Essa experiência com o cinema me fez pensar de que forma eu poderia desconstruir a imagem estereotipada que as pessoas criaram sobre os indígenas, principalmente os do Nordeste. Passei a ter mais visibilidade e me envolvi mais com o cinema, participando de mostras como o Cine Kurumin, produzindo minhas próprias, participando de curadorias diversas e produzindo novas obras”, relata.
Ela ainda é ativista ambiental e criou, em 2015, o “Kaapora”,que tem como objetivo trabalhar com educação ambiental, implementação de Sistema Agro Florestal ( SAF) como projeto de desenvolvimento sustentável, reflorestamento e incentivo a cultura indígena.
Para ela, é preciso desenvolver políticas públicas que cheguem até essas mulheres profissionais indígenas que estão produzindo. “Precisamos descolonizar as mentes da população que acha que os indígenas não produzem ciência, história, economia, arte. É preciso visibilizar e amplificar as vozes dessas mulheres para nos tornarmos uma sociedade mais igualitária e plural. Acho que é um dever da sociedade como um todo colaborar para o engajamento dos indígenas neste mercado, e uma dívida histórica com os povos indígenas que precisa ser sanada. Precisamos nós mesmos falarmos sobre nós, inclusive no audiovisual, e o cinema dos povos indígenas continua incipiente, sobretudo para o mercado de cinema e outros como a TV”, finaliza Olinda.