Nesta terça-feira (29), está em votação no Senado da Argentina o projeto de lei que pode descriminalizar o aborto . Caso aprovada, a legislação autoriza a interrupção de gravidez até a 14ª semana de gestação e prevê a realização do procedimento pelo serviço de saúde em um prazo de até dez dias após a solicitação.
Assim como no Brasil, a Argentina segue, desde 1921, o Protocolo ILE (Protocolo para a Atenção Integral das Pessoas com Direito a Interrupção Legal da Gravidez), que isenta a pessoa gestante de penalidade se procedimento for realizado em casos de estupro ou risco de vida da mãe.
De acordo com dados da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, 500 mil mulheres recorrem ao aborto por ano na Argentina. Desde 1983, estima-se que três mil mulheres morreram em decorrência de um aborto feito de maneira ilegal.
O autor do projeto de lei é o presidente argentino, Alberto Fernández. No entanto, a pauta do aborto legal existe há mais de trinta décadas e é reivindicada pelos movimentos sociais e femininstas do país desde os anos 1980.
Surgimento do debate pró-aborto legal
O debate acerca o aborto na Argentina começa durante o processo de redemocratização do país. As mulheres começaram a se organizar e, em 1986, promoveram a primeira edição do Encontro Nacional de Mulheres, que recebiam poucas pessoas para dialogar. Até o fim dos anos 1990, mais de 30 mil pessoas participaram de edições desses eventos.
“Esse é um fenômenos sócio político muito importante porque promove o encontro de mulheres, inclusive catolicas , que são a favor do aborto. É uma dinâmica política muito peculiar, não existia antes”, afirma Sonia Correa, ativista feminista e pesquisadora especialista em América Latina.
Essa premissa de reunir e unificar pessoas em grupos foi o que ajudou a construir a Campanha Nacional pelo Direito do Aborto Legal, aliança federal que une mais de 300 grupos e organizações que dão assistência a mulheres, promovem encontros com a sociedade, fazem ações educativas e cobram por políticas públicas que garantam o aborto seguro, gratuito e para todos. Entre as propostas elaboradas coletivamente pela Campanha Nacional está o Projeto de Interrupção Voluntária da Gravidez, que foi apresentado à Câmara dos Deputados em 2007, 2009 e 2010.
“Assumimos o compromisso com a integralidade dos direitos humanos e defendemos o direito ao aborto como causa justa para recuperar a dignidade da mulher e, com ela, a de todos os seres humanos”, diz o site oficial da organização.
Segundo Fernanda Martins, integrante da rede de investigação e intervenção feminista Laboratoria, o pleito do aborto não só uniu as feministas, mas ganhou força em outros movimentos populares como de mulheres camponesas, mulheres encarceradas e grupos que pautam a moradia, por exemplo. “Esse é um assunto que, na Argentina, faz com que todos os grupos entrem em diálogo e pensem em estratégias de forma conjunta”, explica. “Essa pauta, historicamente feminista, foi transformada em uma pauta da sociedade”, completa Sonia.
“Aborto legal para não morrer”
Sonia diz que nos anos 1990 houve mobilização por parte de pesquisadores e ativistas feministas para sensibilizar sobre a questão do aborto clandestino, prática pouco segura e muito procurada por mulheres que deseja interromper uma gravidez, mas não têm amparo na lei ou no sistema de saúde.
“Existe hoje na Argentina uma rede de profissionais de saúde a favor do direito de decidir e que não se recusam a fazer o procedimento nos casos de aborto legal. Eles foram atores importantes nesse processo da reforma legal”, explica a pesquisadora.
Existem ainda as habitações feministas socorristas que oferecem informações e fazem o acompanhamento de mulheres que desejam fazer o aborto de maneira ilegal. Nesses casos é usado o misoprostol, medicamento abortivo que, no Brasil, é proibido pela Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde 2006, mas pode ser adquirido com receita na Argentina. “Independente do resultado dessa votação, o aborto está despenalizado na Argentina há algum tempo”, pontua Sonia.
Projeto de Lei sobre aborto votado pela primeira vez
Foi no ano de 2018 que, pela primeira vez, um projeto de lei que visa a descriminalização do aborto foi votado. No dia 14 de junho daquele ano, a Câmara havia aprovado o projeto com 129 votos a favor e 125 contra, mas foi barrado pelo Senado no dia 8 de agosto, que ficou conhecido como 8 de Aborto ou “8A”.
Além da votação, as manifestações e ocupações realizadas por coletivos se tornaram acontecimentos marcantes. Milhares de mulheres fizeram vigílias nos arredores dos locais das votações e carregavam consigo pañuelos verdes (bandeiras) que traziam o lema da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal: “Educação sexual para decidir, anticoncepcionais não abortar, aborto legal para não morrer”. Um dos mais ativos neste momento foi o coletivo Ni Una Menos (em português, Nenhuma A Menos), criado em 2015 — mesmo ano em que levou mais de 1 milhão de mulheres para as ruas de Buenos Aires para se manifestarem contra os casos de feminicídio no país.
“Ni Una Menos cresce por meio da mobilização digital com hashtags, mas colocou corpos na rua de maneira massiva. Essa campanha de repúdio aos feminicídios passa a somar a campanha pelo direito ao aborto e pela legalização, além de respaldo legislativo e administrativo”, explica Martins.
Oposição
Manifestantes da ala política religiosa , composta por católicos e evangélicos, pressionam políticos favoráveis à descriminalização. Ontem (29), uma placa com a imagem da Virgem de Lujan, padroeira da Argentina, foi colocada na entrada do Congresso — mesmo assim, o projeto foi aprovado.
Hoje pela manhã, foram distribuídos panfletos em alguns bairros que diziam que o aborto legal é uma prática genocida. Além disso, afirmavam que a campanha pró-aborto faria com que Jesus Cristo não existisse. A Argentina é um país não Laico; ou seja, tem influências da Igreja Católica na esfera política.
A ala ambientalista do Congresso chegou a se apropriar da cor verde usada pelo movimento feminista para afirmar que “quem defende o planeta não deve ser a favor do aborto”. “É uma ala política que passa a entender, de forma equivocada, que direito a vida é direito ao meio ambiente e que a autorização ao aborto é um assassinato de crianças”, explica Martins.
A pauta também foi recebida com mensagens contrárias pela oposição em agosto de 2018. A vice-presidente da época, Gabriela Michetti, disse que as mulheres poderiam colocar seus filhos para adoção após a gestação. “Há dramas maiores na vida”, afirmou. Enquanto as adeptas do Ni Una Menos usavam seus pañuelos verdes, os manifestantes pró-vida adotaram bandeiras azuis com os dizeres “salvemos as duas vidas”, em referência a pessoa gestante e o feto.
Veredicto
De acordo com Sonia, as posições de senadoras e senadores em relação à votação do aborto são “contraditórias”. Ela diz que a laicidade é o maior obstáculo para a aprovação da lei atualmente. A participação de mulheres no pleito também não pode ser vista como uma vantagem. “A participação das mulheres na política é generosa na América Latina, mas não garante que o parlamento vai se abrir para o assunto em um passe de mágica. Existem muitas mulheres que são contrárias a essa pauta “, afirma Sonia.
A pesquisadora e ativista afirma que, caso aprovada, a lei será uma vitória para o momento político e vai ajudar a enfraquecer o neoconservadorismo político em ascensão na última década; além de se tornar uma forte inspiração para países que querem descriminalizar o aborto. “Será importante para mostrar que é possível mudar leis muito antigas a partir de um trabalho consistente, sistemático e plural”, diz.
Martins ressalta que a aprovação do aborto será apenas um de muitos temas que devem ser debatidos e articulados no país, como é o caso do feminicídio, a precarização das vidas diante da pandemia e a vulnerabilização das mulheres, por exemplo, que são, segundo ela, temas que atravessam a campanha do aborto.
“A conquista dessa reivindicação não é o fim dos movimentos, mas sim um contorno de debates que podem ser ampliados, repensados e articulados por meio de outras estratégias”, afirma Martins.