Dondon é fazendeiro das antigas. Neto de Seu Arrigo. Arrigo era português, que concebeu fortuna por conta das várias riquezas angariadas da criação do gado e amizade nas grandes rodas dos coronéis. Filho de André Bercary, filho de Vanda Damatta, herdou o carisma do pai para os negócios e a inteligência da mãe, tino comercial para grandes oportunidades. Não deu outra. Fez fortuna.
Comprando gado de quem estava com a corda no pescoço, vendia-o nos grandes leilões em Uberaba. Não vendia gado doente ou mal pago. Todo o gado levado a leilão era de excelente procedência. Por conta disso, se um lote qualquer de gado saía por 150 ou 200 mil reais, os seus saíam por 300 ou até 400 mil. Nelore de raça pura, com certificado, era enjoado para comprar gado e idem para vendê-lo. Era caro. Mas quem comprava seu gado tinha a certeza de levar coisa de primeira.
Nas bandas de Goiás e Mato Grosso era afamado.
Um dia, assentado na varanda da sua mais famosa fazenda, a Gir Nelore Damatta, olhando ao longe os empregados tocarem o gado para o curral principal, chamou o seu mais antigo funcionário, o Tinoco.
Tinoco era um senhor já com idade mais avançada. No alto dos seus quase 80 anos, trabalhou para o avô, seu Arrigo, quando criança, jovem para o pai, Seu Bercary e agora já velho, para o neto, Dondon.
Dondon tinha tanta estima no velho que o chamava de Vô Tinoco. Pagava a ele o maior salário da fazenda. Pagava-o com salário acima do administrador, acima do gerente da produção. Nem o seu principal veterinário ganhava como o Vô Tinoco. Nunca exigia dele horário ou produção.
Muito embora o Vô Tinoco pudesse trabalhar o dia que quisesse, quando quisesse, e fosse embora no horário que bem entendesse, por ordem do patrão, nunca chegou atrasado, nunca faltou ao serviço, nunca se manteve sem atividade. Se desse ordem para retirar algum garrote do meio dos outros, sua ordem era cumprida, até mesmo pelo veterinário ou gerente.
Ninguém com ele discutiam, tinha grande e vasta experiência com gado, com bezerro, com o tempo, sol, chuva, qualidade de ração, etc.
Certa vez o gerente comprou ração importada da Argentina, por um preço bem mais em conta. O Vô Tinoco barrou a compra. Não o atenderam, compraram assim mesmo e quando o caminhão chegou na fazenda, o Vô Tinoco deu bronca, xingou. Na primeira semana que deram a ração para o gado morreram 04 bezerros caros, o gado emagreceu e Gir Leiteiro caiu a produção pela metade.
O patrão mandou barrar a ração, retirar totalmente do estoque, reforçando a ordem de obediência ao Vô Tinoco. De quebra, o gerente da época perdeu o emprego.
Vô Tinoco era sabido. Um dia mandou retirar todo o gado do curral de cima, do curral novo, e repassa-lo todo para o curral de baixo, o antigo. Os funcionários apesar de achar aquilo tudo um absurdo, visto que o curral de cima tinha ventilador, dissipador de gases, ração distribuída com motores elétricos, água tratada e tudo, obedeceram.
Colocaram todo o gado no curral de baixo, no qual tudo era feito a mão, no braço, como diziam.
No terceiro dia da mudança o curral de cima (curral novo) estava infestado de carrapatos e moscas. Diziam que o Vô Tinoco tinha salvado o gado.
Na outra semana o pessoal da vigilância sanitária ali esteve. Se o gado estivesse no curral de cima, infestado, teriam que vacinar todo o gado, bem como retirar os bezerros sem registro para sacrifício e enviar o gado para análise na capital, a fim de receber selo e certificação sobre febre aftosa.
Deu trabalho, mas certamente o Vô Tinoco economizou ao patrão milhares de reais e acima de tudo, garantiu o prestígio e a boa fama do patrão e da fazenda.
Mas como contava a vocês, o Dondon mandou chamar o Vô Tinoco para uma conversa. Foi assim:
– ô Vô Tinoco… olha ali aquela vaca…
– Que que tem a vaca, Dondon…
– Olha que beleza, que vaca linda. Seus bezerros vão ser fortes, valentes e belos… Essa tem estirpe. Cada bezerro que sair dessa vaca paga a produção de um mês inteiro.
– Pra mim essa vaca é é burricida demais… Não toma água junto com as outras. Tem que dar no balde… É chata igual a minha mulher, vaca exibida.
– Fala assim da vó Siana não… Se ela escuta, te dá café amargo (ela fazia café sem açúcar para o Vô Tinoco toda vez que o velho lhe fazia raiva. Ele gostava demais demais de café. Não vivia sem o café. Quando ia na garrafa e o café estava amargo, cuspia todo o café do copo no chão, na mesa, onde estivesse, na presença de quem estivesse. E a mulher ria muito dele. Era pra descontar a raiva que o vô poderia ter lhe feito. Sempre assim)!
– Café amargo é pior do que morar com sogra…
– Essa vaca vale 25.000 reais, Vô…
– Pra mim ela não vale nem um centavo… Tem que buscar na corda porque ela não anda. Não pode bater porque senão diminui a produção de leite; tem que dar a água que tá no balde porque a da caixa ela não bebe… tá igual a minha mulher, enjoada…
– Olha vô, ela dá produção por mais de 8 anos… são oito anos dando lucro, vô…
– Dando lucro pra você e me dando trabalho… Olha só, esse negócio de lucro é pra quem já tem dinheiro. Pra quem não tem, não adianta a vaca ser cara, dar muito lucro, dar muito leite, dar bezerro caro, dar despesa… Pobre quer ver é a vaca ir para o curral, para o cocho comer, beber água da caixa pra não dar trabalho, curar o ferimento quando ferra a marca do patrão… Isso é o que interessa. Quanto custou, não sei o quê, isso não faz diferença…
– Esse ano ela já pagou o investimento e ainda nos deu aqueles cavalos todos lá em cima, do pasto do Alvimar e comprei aqueles bezerros Nelore do Vaninho…
– Em vista do que ela come, tem que dar lucro mesmo… Come mais que todas as outras vacas junto..
– E a ração é balanceada…
– Tem que ficar pesando as quantidades. Dá trabalho essa miserenta…
– Mas dá lucro…
– Mas dá trabalho…
– Mas já viu lucro sem trabalho?
– E você já viu trabalhar sem lucro?
– Tá certo Vô Tinoco… O que você acha de darmos uma festa pra comemorar?
– Agora você tá falando a língua do pobre… Mata um porco gordo e assa, coloca pro pessoal comer e pronto…
– Fala pro pessoal que sábado depois do leite da tarde todo mundo vem pro curral de baixo pra gente comemorar o ano bom, então…
– Logo depois que eu colocar essa enjoada dessa vaca no curral pequeno eu mato o porco…
– Essa vaca é mais enjoada que a minha mulher…
Histórias que o povo conta…
IJR/