Por eu gostar de personagens excêntricos, minha vilã Disney favorita sempre foi Cruella Devil, ainda mais na versão da atriz Glenn Close. Até que descobri como Úrsula, vilã de “A Pequena Sereia”, foi desenvolvida. Seu filme, de 1989, pode ter sido baseado no conto dinamarquês de Hans Christian Andersen, mas a construção da bruxa do mar veio de uma figura LGBTQI+ underground.
Feiticeira queer e “divina”
Na história infantil, Úrsula é um ser mitológico marinho que tem, da cintura para cima, aparência feminina e o restante do corpo como o de um polvo. É a principal inimiga de Tritão, o rei dos mares, e para atingi-lo e tomar seu poder atrai e faz de refém sua filha, a pequena sereia Ariel, que pede a ela uma transformação visual que deixa sua família inteira em choque.
Em paralelo, a bruxa também resolve virar humana, rouba a voz cantante de Ariel e adota o nome “Vanessa” para seduzir o príncipe humano por quem a sereinha é apaixonada. A concepção dessa trama, que não é “A Gaiola das Loucas”, em grande parte é resultado do talento de um produtor cinematográfico gay e de um animador inspirado por uma drag queen.
Seus nomes? O produtor é Howard Ashman, contratado pela Disney para repaginar suas animações. Ele vinha da Broadway e era responsável por escalar elenco, criar diálogos, canções e desenvolver personagens. Já o animador é Rob Minkoff, que desenhou uma vampira com excesso de peso que todos bateram o olho e concordaram: era a cara da drag Divine, que era conhecida como atriz e anti-heroína de filmes B que misturavam sexo, violência e sadismo.
No caminho do sucesso
Nos esboços iniciais, Úrsula tinha os olhos maquiados, usava joias, movimentava seu corpo com luxúria e glamour, mas em vez de tentáculos, Minkoff desenhou para ela uma cauda de tubarão e um moicano rosa. “Ela parece uma matrona de Miami Beach. Consigo até imaginá-la em uma piscina”, gargalhou Ashman quando viu os protótipos da vilã pela primeira vez.
Nessa época, Divine estava em alta e Ashman, que também era seu fã, percebeu que deixar Úrsula alinhada com ela poderia dar certo. Em 1988, a drag estava em cartaz com um dos maiores sucessos de sua carreira, o filme musical “Hairspray”, do diretor John Waters. Ele a acompanhava desde o início da carreira, quando ainda era cantora disco, e também a lançou como atriz a partir de seus filmes “Pink Flamingos”, “Mondo Trasho” e “Problemas Femininos”.
Divine também serviu de base para compor o comportamento de Úrsula, embora de forma sutil e apropriada para um filme infantil. Em cena, ela era desbocada, divertida, carismática e possuía uma natureza maligna que também soava libertadora, como se a usasse para romper padrões e mostrar para a sociedade, inclusive à Atlântida de Tritão, como dar a volta por cima.
Imortalizados em gerações
Com “A Pequena Sereia”, a Disney se recuperou de um período de crise e inaugurou a era das animações musicais infantis bem-humoradas e com tom mais adulto. Se antes filmes como “O Caldeirão Mágico”, de 1985, custavam US$ 25 milhões e arrecadavam US$ 21 milhões, os filmes seguintes eram produzidos pela mesma quantia e recebiam de volta dez, vinte vezes mais.
A parte triste dessa história é que nem Divine nem Ashman puderam experimentar esse sucesso todo. Glenn Milstead, que deu vida à drag queen morreu de insuficiência cardíaca em 1988, três semanas após a estreia de “Hairspray”. Se soubesse de Úrsula, teria feito o papel, afirmaram John Waters e Jeffrey Schwarz, que produziu um documentário sobre sua trajetória.
Quanto a Ashman, logo após o lançamento de “A Pequena Sereia” adoeceu. Ele contraiu HIV, mas os colegas não sabiam e ele continuou a trabalhar. Porém, logo após ter terminado de escrever as canções da animação seguinte, “A Bela e a Fera”, e enquanto desenvolvia “Aladdin”, apresentou complicações e precisou ser internado. Morreu em 1991, prestes a ganhar o Oscar. Minkoff, que desenhou Úrsula, virou cineasta e ficou famoso por dirigir a animação “O Rei Leão”.
Fontes: Sites Howardashman.com e IMDB; livros “My Son Divine” (sem tradução), de Frances Milstead, Steve Yeager e Kevin Heffernan e “Still Standing: The Savage Years”, (sem tradução) de Paul O’Grady; e documentário “I Am Divine” (sem tradução), de Jeffrey Schwarz.