Uma voz esganiçada dispara “Calcem os sapatos! Os sapatos”, enquanto duas dezenas de mulheres ouvem atentas e buscam atender a ordem-anseio de uma personagem mulher-carne. O espetáculo “A corda, Alice”, que estreou nesta semana no Teatro de Contêiner Mungunzá, no bairro Santa Ifigênia, em São Paulo, é uma colcha de retalho de tudo isso: anseios, ordens, mulheres e carnes, num mundo e momento que insiste em exigir formas e padrões.
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A obra, concebida a partir de experiências relatadas por grandes nomes femininos da literatura, bem como das experiências pessoais de 20 atrizes, fica em cartaz até o dia 30 de janeiro, oferecendo socos no estômago de espectadores convidados a refletirem sobre a experiência de ser mulher no século 21.
Com orientação de Juliana Sanches, do Grupo XIX, “A corda, Alice” nasceu de experiências imersivas de um elenco de duas dúzias de atrizes em formação que foram instigadas a explorarem as histórias de mulheres ao seu redor e de suas próprias famílias. A peça combina experiências pessoais e relatos eternizados de nomes da literatura como Carolina de Jesus, Simone de Beauvoir, Virgínia Woolf, Hilda Hilst e Adélia Prado. A experiência foi conduzida num grupo de pesquisa na Vila Maria Zélia, na zona leste de São Paulo. No resultado, entram em palco cinco Alices, que evocam também Pagus e Marielles para bater de frente com a corrida contra um tempo impassível a lhes oprimir e, quase sempre, confundir.
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Ao longo do espetáculo de 70 minutos, relatos reais e encenados tratam da primeira menstruação à luta contra o câncer, passando por reflexões mais etéreas, desde a ancestralidade no ato da geração de filhos até o envelhecer para além da consistência da própria pele. Os textos, que passam por discussões de autoimagem e até astrologia, são declamados por todos os lados, exigindo que o público desloque o olhar do chão ao teto e até mesmo para fora do palco.
Não há homens envolvidos na produção – da iluminação à sonorização, o lugar de fala é exclusivo. O convite ao mundo delas, no entanto, é universal e a identificação, sem gêneros, fica ainda mais latente diante da cativante interpretação de Cacau Fonseca, receptáculo da personalidade do próprio tempo, numa brasileiríssima versão feminina do que seria o Coelho Branco de Lewis Caroll no universo da tal outra Alice mais conhecida.
Fruto do Acorda Coletivo , a peça é orgânica e, como alguns dos nomes do palco, ainda tenta se encontrar, não apenas no meio, mas na própria identidade – uma forte sugestão de que em cada estrutura e palco que o texto for apresentado, bem como a cada noite diante de públicos distintos, é possível que o espetáculo seja um outro, com diferentes resultados e impactos.
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O próprio grupo parece tentar se encontrar em cena, o que dá um caráter ainda mais natural ao conjunto, à exceção da discussão de aceitação do próprio corpo, em todas as suas formas e pelos, durante o único nu em cena, protagonizado, ironicamente por uma das atrizes que melhor resumiriam o padrão clássico de beleza socialmente aceito.
Alice poderia ser qualquer mulher e o despertar proposto em “A corda, Alice” é, de certa forma, de como a solidão de cada uma, ao deixar de fazer-lhes companhia, resulta numa sororidade tão urgente quanto necessária. É também sobre as dúvidas e tragédias diárias que encontram mais espaço para ressoar do que se possa imaginar. O espetáculo busca fazer o público, junto ao elenco, subverter qualquer que seja “a ordem natural das coisas de meninas”; e faz isso com a disposição de gente grande, com os pés no chão ou mesmo de saltos altos.
A corda, Alice
Teatro de Contêiner Mungunzá
(Rua dos Gusmões, 43, Santa Ifigênia)
Terças, quartas e quintas, às 20h
Ingressos: de R$ 5 a R$ 40 no local ou em eventbrite.com.br