Luna

(continuação)

O homem pulou o balcão gritando o nome da moça. Bené, avistando um espeto de churrasco, cravou-o no pescoço do homem. Com um golpe de puro ódio, com a palma da mão, deu um tapa no pé do espeto, enterrando-o de vez, transpassando-o. O sangue esguichou no chão do bar. O homem correu, caindo na frente da arquibancada. O povo debandou. Muitos caíram da arquibancada, uns sobre os outros, causando ferimentos. Infelizmente, outro evento fatídico ocorreu.

            A mãe do prefeito da cidade (não se recordava do nome) ao tentar correr, caiu da arquibancada e bateu a cabeça. Seus ouvidos passaram a sangrar e, embora rapidamente o socorro viesse, não resistiu. Os dois fatos se somaram e o Bené teve que sair do local, evitando que as pessoas lhe causassem ferimentos.

            Depois de dois ou três dias, o delegado, Doutor Pacheco, bateu-lhe à porta da casa. Bené foi preso na frente da sua mãe e da sua irmã, a mando do prefeito. Levado a julgamento, culpado pela morte do homem, foi indiretamente acusado da morte da mãe do prefeito. Sentença de 30 anos de prisão. Ele reconheceu a culpa, embora a perda da senhora lhe causasse igual sofrimento.

            A lembrança dos olhos verdes da moça, do seu cabelo loiro brilhando por causa do reflexo do sol nas garrafas sobre o balcão, causavam no Bené redobrado sentimento de tristeza e dor. Seu futuro foi-lhe arrancado das mãos. Seus irmãos nunca o visitaram. Sua mãe e sua irmã, vez por outra apareciam na delegacia para conversar. Depois do falecimento das duas, nunca mais recebeu nenhuma visita.

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            Muitos anos depois, soube que o estádio foi demolido para a construção da prefeitura. Aos fundos foi construída a rodoviária da cidade. Doutor Pacheco disse ao Bené que ele iria trabalhar na delegacia, limpando, cozinhando, e, à noite, deveria retornar para a cela, para dormir. Recebeu colchões novos, roupa limpa, chinelos novos e dois pares de sapato. Passou a cozinhar, lavar e cuidar da cozinha da delegacia. Recebia as pessoas, atendia o telefone.

            Por causa da escrivã que passou a trabalhar ali, filha de dona Geni, aprendeu a ler e escrever. A moça tinha muita paciência e, todos os dias, ensinava-lhe alguma coisa. Ao fim de pouco mais de um ano, o dedicado Bené, que não dantes não sabia nada das letras e dos números, estava fazendo contas, escrevendo cartas e auxiliando as pessoas.

            O Venceslau da venda faleceu no mesmo ano que o Ari, vereador por quatro mandatos, venceu a disputa eleitoral, elegendo-se prefeito da cidade. O Doutor Pacheco, muito a contragosto, foi para outra cidade, sendo substituído pelo Brandão. Brandão não gostava de ser chamado de doutor. Eram novos tempos. Tratava o Bené de forma fria e impessoal. Chamava-o de ‘cela livre’, apesar dos protestos dos demais servidores da delegacia.

            O Bené nada dizia, sentindo saudade do doutor Pacheco. Aquele sim era um delegado ‘boa praça’. Suas idas e vindas na padaria, no açougue, no supermercado findaram. Ficava somente no interior da delegacia, mal avistando as pessoas que passavam pelas janelas que ‘davam’ para a rua. A filha da dona Geni foi promovida e, despedindo-se de Bené, abraçados na antessala do delegado, choraram os dois amigos. E quem disse não existir amizade entre um homem e uma mulher?

            O Doutor Durval, advogado, chegou então com uma carta para o Bené, dizendo que o tribunal havia lhe concedido ‘alvará de soltura’, tendo completado o tempo de sua pena. Assinou a carta e, colocado na calçada pelo delegado, viu-se perdido. Não sabia nem para que lado era a casa de sua mãe. Perguntou a duas ou três pessoas sobre o bairro, a rua, e após ser orientado, se foi.

            Chegou na casa… Para sua tristeza, estava cheia de mato. A casa estava entreaberta. As portas foram furtadas e as janelas, de madeira, estavam rachadas, sem uso. Não havia nenhum móvel, nenhum eletrodoméstico. Foi às lágrimas, ao lembrar do seu pai, ao lembrar de sua mãe, da sua irmã. Onde estariam os outros irmãos? Cheio de lembranças, ali mesmo adormeceu. O sol raiou e Bené buscou ajuda.

            Foi até a prefeitura, sendo recebido pelo prefeito, Ari, seu amigo. Ari emprestou-lhe dinheiro e ele comprou o básico: fogão, geladeira, cama, panelas, pratos e colheres, copos, cobertores, lençóis, travesseiro… Comprou também roupas. Ari arrumou-lhe também um trabalho. Depois de três dias passou então a desempenhar o serviço ofertado, depois de 30 anos preso: coveiro. Dedicado, passou a desempenhar com afinco a profissão, aprendendo seus segredos rapidamente.

            Veio então a notícia do falecimento de uma pessoa. Pelo visto, era muito importante, dada a multidão que se aglomerava no salão de velório. Bené se interessou. Quem seria?

            Passou por entre a multidão e, chegando próximo ao caixão, não ousou mirar o rosto da senhora que ali estava. Ao olhar para as mãos, uma por sobre a outra, viu a cicatriz em forma de lua, nas costas da mão direita e, virando-se para a saída do salão, lembrou-se de “Luna”, e chorou…

            Histórias que o povo conta…

IJR/

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