Por Alex Bessas
Não, o E-Cult não voltou. Ele continua. Como é de sua característica primeira: por se pretender movimento pró-cultura, a realização de outro evento na Praia Municipal, depois do último, há quatro anos, não significa um retorno de atividades bimestrais, como se viu naquele fatídico 2013. É apenas, e imponentemente, a demonstração da continuidade de uma reunião que prima pela ação – portanto, em movimento. E não é difícil sustentar tal tese: quando da sua primeira realização, ainda com o prolixo nome de MOVIMENTO COLETIVO E POPULAR PELO USO DA PRAIA, formou-se ali um estado de coletividade capaz de conectar pessoas das mais diversas tribos e ideologias. Vale dizer, aliás, que foi daquele lugar que muitos formaram-se ideologicamente. Em um primeiro instante, o grupo quis, com suas melhores intenções e uma certa inocência, jogar luz sobre os usos dos espaços públicos, situando, principalmente, a Praia Municipal, maior cartão postal da cidade. Naquele momento, é verdade, qualquer tese se mostrou válida. Com o tempo e o debate várias delas caíram e outras se fortaleceram.
A construção de um evento popular que fosse capaz de reunir grande número de atrações diversas e um público que viesse de todos os horizontes da cidade forjou a concepção de um tripé que sempre norteou o ideário do E-Cult: (1) eventos abertos e gratuitos; (2) fundados a partir do voluntarismo; (3) que, necessariamente, acontecem em espaços públicos. Como grita a personagem Mafalda em uma tirinha já publicada pela página do movimento no Facebook: “OCUPAR!” a cidade de arte e cultura é o objetivo-fim das realizações do E-Cult. E, a partir deste princípio, pensar como cada equipamento do município pode ser melhor utilizado por e para seus cidadãos. Este tripé de sustentação é o que caracteriza a assinatura do coletivo: os atores envolvidos não recebem pelo trabalho que emprestam à causa, a população encontra as portas abertas para participar das atividades dispostas em lugares públicos.
Esta concepção base do que é o E-Cult funciona como a pedra fundamental do movimento, sendo resumida no lema proposto pelo grupo e que aparece em uma das artes da página: “E-CULT, DE NINGUÉM, PARA TODOS”. Ora, mas como DE NINGUÉM se havia mais de dezena de pessoas pensando, realizando e se voluntariando pela realização deste encontro? A escolha de abdicar pela nomeação de responsáveis dialoga com a perspectiva base do pensamento que ali prosperou. Dois aspectos são fundamentais para entender seu significado: (1) a noção clara de que não haveria nenhuma liderança petrificada, sendo um movimento horizontal e aberto (o conceito de horizontalidade evocado implica disciplina e transitoriedade de lideranças); tanto que em certo momento foi instituída uma regra determinando que todas as reuniões seriam públicas para que qualquer pessoa pudesse participar, sendo que em sua terceira participação, ganharia direito ao voto; (2) há também elementos dessa identidade presentes no discurso do pensador esloveno Slavoj Žižek durante o questionador movimento americano do Occupy Wall Street: “não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim”. Portanto, a despersonalização do movimento tem a potencialidade de frisar o abandono de um impulso vaidoso, transferindo a glória ao trabalho duro, ao acontecer de fato.
Entender estes conceitos é essencial para compreender o lugar deste movimento na cidade. Mas ainda é preciso olhar para o contexto mundo daquele momento histórico: (1) Primavera Árabe, (2) o já mencionado Occupy Wall Street e as (3) Jornadas de Junho – estas inclusive chegaram a ser debatidas pelo grupo em assembleia aberta e pública – fazem parte de um conjunto histórico de fatos contemporâneos entre si que, juntos, forjaram a constante sensação de poder e mudança.
No fim de 2013, no entanto, já exauridos por uma rotina de trabalhos constantes, com realização de eventos bimestrais abordando temáticas variadas (festa junina, hip hop, cinema, saúde mental, música autoral, poesia e ecologia) em espaços públicos múltiplos (praça de eventos, praia, antigos museu e estação ferroviária), o Núcleo de Organização do E-Cult atravessou seu momento mais difícil. (1) Muitos membros-fundadores já não viviam na mesma cidade – vale dizer que participar de todo esse processo de construção coletiva foi fundamental para que estas pessoas escolhessem ousar por novos caminhos, abandonando a pacata vida que levavam até então. (2) Naturalmente, alguns conflitos se fizeram presentes, o que, em verdade, só colaborou para o amadurecimento democrático daquele conjunto antes tão uniforme. Algo a se comemorar, afinal, Nelson Rodrigues já sentenciou, sacanamente, toda a burrice da unanimidade. (3) Em 2014, apesar de parte do grupo focar na condução da Fundação Futura, todavia, a escolha foi pelo recolhimento, sem que houvesse a realização de nenhum evento assinado pelo coletivo E-Cult. (4) Em 2015 os organizadores se reuniram em torno do “Carnaval da FUTURA” e parte se debruçou sobre a realização do “Festival Lacustre”, um evento que premiou bandas da cidade e região. (5) Em 2016, outra vez, nenhum evento foi organizado pelo movimento. Neste intervalo, quem continuou o trabalho duro e ocupou espaços públicos com eventos gratuitos foram os membros do Nexalgum. Valem algumas notas sobre este coletivo: (1) contemporâneo do E-Cult, o Nexalgum é um primo de mesma idade; (2) diferente do que algumas pessoas pensam, o coletivo não “nasceu do E-Cult”, sendo eles independentes um do outro, mas parceiros realizadores com um objetivo em comum: a luta pela difusão cultural e por boas condições para o fazer artístico na cidade.
Bem, aqui está posto o problema: com o anúncio recém-lançado da realização de mais uma edição do evento, por que é incorreto dizer que o “E-Cult está de volta”? A resposta é simples e já foi e está publicada. Em uma das artes que estão na página do movimento está a frase “SEMEANDO IDEIAS, COLHENDO CULTURA”. Este é um dos motes do grupo: o E-Cult, em si, é para disparar o apetite pelas artes, é para fazer olhar ao redor e se reconhecer enquanto cidadão de uma cidade de nome e cultura próprios; e tem tanta autonomia sobre o seu sentido de existir que permite a si, até mesmo, a inconstância. Desta maneira, é possível dizer que o trabalho do coletivo rendeu resultados significativos. Quando perguntado se o E-Cult voltaria, a resposta sempre foi: ele está aí.
Para melhor explicar este ponto é preciso retroceder à 2012: (1) ainda no primeiro evento, um grupo de crianças que se apresentariam descobriram naquele dia a Praia Municipal, mesmo elas sendo nascidas e residentes em Lagoa da Prata; (2) uma senhora, que foi para ver a apresentação de capoeira da Apac, onde seu filho se apresentaria, chegou mais cedo e se surpreendeu por descobrir que ela também estava inserida naquele espaço, “nunca imaginei ir em uma exposição de quadros”, disse, extasiada, a um membro da organização. Além disso, foi inspirado no formato de evento que esta organização catapultou que germinaram e cresceram outras iniciativas. (3) Como um festival de fim de ano realizado pela CDL/Aceprata, (4) mesmo o Clube dos Motoqueiros chegou a ensaiar diálogo sobre o seu primeiro evento na cidade; (5) bares e restaurantes se abriram mais para os artistas locais e a música ao vivo ganhou calendário permanente. (6) Fora talentos, vozes, tons que se fizeram vistos debaixo daquelas tendas. Portanto, o E-Cult participa da memória afetiva de seus contemporâneos, afetou pessoas e suas organizações e, por essa razão, é latente e reverbera.
Agora, em 2016, uma nova reunião coletiva, horizontal e aberta será realizada. Trata-se do 3º E-Cult. Vital para o prosseguir, o movimento recebe sangue novo, está mais aberto e mais diverso. Vale citar uma passagem do filósofo russo Mikhail Bakunin acerca de seu conceito particular de disciplina e liderança, também incorporada ao jeito estilo coletivista do movimento. “Nenhuma função se petrifica, se fixa e fica irrevogavelmente ligada a nenhuma entidade ou pessoa. A ordem e a promoção hierárquica não existem, de modo que o comandante de ontem pode tornar-se o subalterno de hoje. Ninguém se eleva acima dos outros, ou se se eleva, não é senão para cair logo a seguir, como as ondas do mar, voltando sempre ao nível salutar da igualdade. (…) O poder baseia-se na coletividade, e torna-se a expressão sincera da liberdade de cada um, a realização fiel e séria da vontade de todos”. Tal concepção ainda se aproxima de um dos trabalhos do renomado coletivo de artistas plásticos cubano Los Carpinteros. A obra “Podium” simula o palanque usado por Fidel Castro para discursos, a peça, porém, é feita em papelão. Sendo neste material, “todos têm a capacidade de fabricar e montar”. “Você mesmo pode fazer e, terminando o discurso, desmontá-lo. Essa prática cria uma possibilidade de metáfora que nos interessa muito”, asseguram Marco Castillo e Dagoberto Rodriguez, que expõe no Brasil desde o ano passado.
Nesta perspectiva, há o intuito de se organizar como que neste mar mencionado por Bakunin: ondas de novos voluntários assumem o posto e organizam um novo evento, absorvendo mais propostas sem descartar acertos do passado e sempre respeitando o tripé fundamental já mencionado neste. Com esta abertura, em um próximo momento, existirá uma nova onda de pessoas e de vontades de fazer, tornando possíveis que mais e mais eventos assinados por essa coletividade aconteçam. É por tudo isso que, sem dúvida, o E-Cult nunca deixou de existir. E por isso agora não volta. Continua.
Sobre o autor: Alex Bessas é jornalista.
Sobre o artigo: Esta explanação diz da vivência particular do autor no coletivo E-Cult, que integra desde 2012. Além de impressões pessoais, o texto traz diversos conceitos pontuados por todos os integrantes do coletivo e que caracterizam o que é E-Cult.