Luna
Bené passou um longo período na cadeia. Na verdade, ficou toda a sua juventude na cadeia de Mansueto. Cadeia aos fundos da delegacia da cidade, o que era comum naqueles tempos.
Por muitos anos, foi o único preso daquela cidade (não me pergunte onde fica, já me esqueci). O delegado mais antigo da cidade, Dr. Pacheco, muitas vezes deixava o Bené ir até o açougue, padaria e restaurante. O Bené nunca chegou atrasado ou decepcionou o Dr. Pacheco. Nunca falou em fugir, nunca disse palavra alguma em relação a desaparecer da cadeia. Preso que se prese, pensa todo o tempo em fugir. O Bené nunca tocou em assunto.
Dizia que na verdade não tinha mais vida alguma, em nenhum lugar. O pai morreu dois anos antes da tragédia. Depois de quase cinco anos preso, viu a mãe falecer sozinha em casa. Os irmãos foram todos para São Paulo tentar a vida. Uma das irmãs, uma que não tinha a cuca muito legal, ficou cuidando da mãe mas, por causa do diabetes e problemas nos rins, faleceu. Sozinha, depois de pouco mais de 1 ano, sua mãe faleceu também.
Bené a princípio não quis contar sua história, mas convencido pelo advogado, Doutor Durval, passou a contar-me sua desventura.
Disse-me que corria o ano de 1960, sob prenúncio de uma revolução militar prestes a acontecer. Eram tempos de fartura e bonança. Estava correndo dinheiro e a construção civil, as estradas de ferro e o comércio estavam a todo vapor. Bené afirmou que ajudava o Venceslau na venda durante o dia. À tardinha, ia para o campo de futebol cuidar da grama, capinar, passar cal nas marcas do campo e encher as bolas. O Ari vereador pagava-lhe alguns cruzeiros e deixava-o entrar nas quartas-feiras, sábados e domingos no campo, de graça, desde que pegasse as bolas que voavam por sobre os gols ou caíam fora do estádio, cercado de muros e iluminado pelo Francelino Pereira que naqueles tempos era deputado. Bons tempos.
Bené tinha então vinte anos. Sua pele morena dava-lhe ares de menino. Calças curtas, descalço, analfabeto, passou ali sua adolescência e início da juventude.
Nessas idas e vindas, observava sempre uma garota de vestido amarelo, de chapéu na cabeça e sandálias pretas. Esguia, chamava a atenção por onde passava. Era muito bonita e seu perfume incendiava a arquibancada. Um dia, olhava fixamente para a moça e tomou uma bolada na lateral do rosto… Ficou totalmente vermelho. Todos no campo riram dele, inclusive a moça. Uma vergonha total, pensou. Decidiu que nunca mais iria voltar naquele campo de futebol, de tanta vergonha. Era um sábado. Os jogadores foram conversar com ele, dizendo que era bobagem, que acontecia com qualquer um, que era pra se proteger durante a partida, evitando levar boladas. Buscou refúgio do outro lado do campo, dizendo que não mais olharia para a moça, motivo da sua vergonha.
Na semana seguinte construíram duas arquibancadas de cimento, cobertas com telhado de amianto, novinhas, bem atrás de onde ele gostava de ficar, a favor do sol. Não atrapalhava ver os lances do jogo. Com a cobertura das telhas de amianto, tinha sombra até na marca da pequena área. Para lá se mudaram os grã-finos da cidade, a assentarem-se na sombra. Ricos na sombra, os pobres no sol.
Depois de algumas semanas, a moça passou a cumprimenta-lo, pedindo sempre que lhe buscasse refrigerantes, doces e salgados. Passou a ganhar alguns cruzeiros para isso. Comprou caixas de isopor, colocando os refrigerantes e salgados no interior destas caixas, posicionando-se ao lado da arquibancada. Passou a ganhar gorjetas e algum dinheiro.
Logo, comprou calças, botinas e camisas de linho. Comprou chapéu, correias com presilhas de ferro, meias e outros utensílios. Ofereceram-lhe construir um bar ao lado da arquibancada, no que ele aceitou. Estava feito na vida. O Ari, vereador, montou o bar e o Bené passou a conduzi-lo. Os lucros eram divididos, apesar do Bené fazer todo o serviço. Por ser analfabeto, não saber fazer contas, o Ari, vereador, entrou de sócio.
A moça, acompanhando o pai no futebol, sempre às quartas, sábados e domingos, ficava o horário inteiro das partidas assentada do lado do balcão do Bené, recebendo dele refrigerantes e lanches, pelos quais nunca pagou. O Bené ficava doido com aquela visão: a moça mais bonita da cidade, assentada do lado do seu balcão. Era muita felicidade. Ela ria, jogando os cabelos loiros de um lado a outro dos ombros, para desespero do Bené que assitia a cena, bobo, hipnotizado. Ficava nas nuvens. Como era linda!
Ela chamava-lhe de “Beninho”! Bené ficava doido, com as bochechas vermelhas de felicidade. A moça tinha uma cicatriz no dorso da mão direita, em forma de lua. Todos os dias, na chegada e na partida, o Bené beijava-lhe a mão, bem em cima da cicatriz, falava “Luna”, baixinho, e a moça beijava a ponta do indicador, colocando-o nos lábios do Bené. Ele ria, como menino. Era muita felicidade. Felicidade até que o infortúnio se fez…
Um rapaz de vestes ricas e chamativas, veio por detrás do campo de futebol, gritando impropérios e xingamentos. Chamou a moça de vadia, de p… e de muitos outros nomes. Bené não entendeu… A moça tremia e, pulando para o interior do balcão, pediu a Bené que a defendesse, visto que o pai estava longe e os gritos da torcida não permitiria ouví-los. O Bené aguardou a chegada do homem que, passando a mão sobre o balcão, jogou tudo que ali estava no chão: pratos, copos, garrafas, comida, talheres e salgados… O Bené sentiu ódio na face. Seus olhos e seus lábios tremiam. O vereador veio correndo pois sabia que aquilo iria terminar muito mau.
(CONTINUA… na edição 1162)